A madrugada desta sexta-feira (27) foi marcada pelas homenagens às vítimas do incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, na região Central do Rio Grande do Sul, onde 242 pessoas morreram há quatro anos.

A concentração começou ainda na noite de quinta-feira (26), na Praça Saldanha Marinho. Em silêncio o público caminhou até a frente da boate, onde permaneceu até as 2h30 desta sexta, quando teve início o incêndio.

Flores, velas e mensagens foram deixadas em frente à boate em momentos de saudades, dor e revolta dos pais, amigos e familiares das vítimas.

Durante a vigília, as famílias rezaram e cantaram juntas. Até mesmo quem preferiu um momento de solidão ganhou um ombro amigo, em um momento marcado pela dor e solidariedade. Fabiana Funk, representante da Chapecoense, equipe de futebol vitimada por um acidente aéreo, foi até Santa Maria para agradecer pelo apoio recebido após o acidente.

A programação de homenagens continua ao longo desta sexta com várias atividades a partir das 9h, com uma conversa com profissionais que atuam em atividades ligadas à tragédia, além de apresentações, musicais, culto ecumênico e a soltura de 242 balões com o nome das vítimas.

Processos na Justiça

Desde o incêndio, há quatro anos, a Justiça já recebeu mais de 370 ações com pedidos de indenização familiares de vítimas e sobreviventes da tragédia. Do total, 250 ainda estão em andamento e 20 processos já foram julgados, de acordo com a Vara Cível da Fazenda Pública.

Na semana passada, duas ações resultaram em condenação a pagamentos de indenização. Uma sobrevivente obteve R$ 20 mil para continuidade de tratamento, mas a decisão cabe recurso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Já familiares de uma das vítimas conseguiram quase R$ 200 mil.

Conforme a Justiça, pelo menos 10 ações estão esperando definição do juiz quanto ao valor da indenização. O diretor do Fórum de Santa Maria, Rafael Cunha, observa que nestes casos o estado e o município têm a obrigação de recorrer. A demora dos julgamentos também se deve ao grande número de réus citados nos processos.

Transformando dor em solidariedade

Para enfrentar a perda, familiares e sobreviventes se reuniram em associações para lutar por justiça e também para transformar a dor em solidariedade. Isso porque após quatro anos, o sentimento ainda é de impunidade entre aqueles que foram afetados pelo que aconteceu.

Para enfrentar o luto, a dor da perda e somar forças na busca por justiça, as famílias das vítimas se reuniram em associações, que atuam também para prestar auxílio aos sobreviventes.  A cada 15 dias, a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) realiza reuniões. O grupo foi formado em março de 2013 e conta com mais de 800 integrantes.

O atual presidente da entidade, Sérgio da Silva, que perdeu o filho no incêndio, acredita que a união dá forças para que possam seguir em frente.

“A associação, ela representa a voz de quem não tem condições de gritar e pedir seus direitos. Então, a associação tem essa grande importância. Mas isso me faz bem estar envolvido, às vezes um sobrevivente me liga, eu tento resolver de um lado, ou uma mãe chora e reclama e, de repente, dou uma fugida, vou lá e levo no acolhimento. Mas é um trabalho voluntário que eu faço e isso me faz seguir em frente. A melhor maneira de você aliviar um pouco teu sentimento é você fazer algo por alguém”, afirma Silva.

Outro movimento atuante em Santa Maria é o Luto à Luta, que se reúne em busca de justiça para que os culpados pelo que aconteceu sejam responsabilizados. “Nós não tivemos tempo de curtir o luto dos nosso filhos porque, desde então, quando nós vimos que os processos estavam se encaminhando pelo caminho totalmente diferente daquele que nós achávamos que era certo, nós começamos a cobrar, e aquilo serviu para unir as famílias, cada vez mais”, diz o presidente do Movimento Luto à Luta, Flávio da Silva.

Jéssica perdeu o irmão Vinícius na tragédia. Ele morreu após salvar outras pessoas de dentro da boate, no dia do incêndio. A família resolveu seguir os exemplos deixados em seus últimos atos, usando a solidariedade para amenizar a dor. Sob essa ideia foi criada a associação AHH Muleke.

“Eu acho que isso conforta muito a gente, acho que isso faz tão bem, e eu me cobro diariamente. Como eu faço faculdade e trabalho, às vezes, eu não acho tempo. Só que, às vezes, é uma desculpa a falta de tempo que a gente tem.  Eu acho que isso me traz muita felicidade e me traz um retorno para minha vida incrível”, afirma Jéssica Montardo Rosado.

Petição à OEA

Na quarta-feira (25) foi apresentado o teor de uma petição internacional dirigida à Organização dos Estados Americanos (OEA)  que pede a responsabilização do Brasil pela violação dos direitos das famílias das vítimas do incêndio.

A denúncia partiu de várias entidades. Os argumentos foram apresentados na Sede do Instituto dos Arquitetos do Brasil, em Porto Alegre. Um grupo de pais viajou para acompanhar a leitura do documento.

A petição é assinada  pela advogada Tâmara Biolo Soares. Segundo ela, a intenção é cobrar a responsabilizaçãode entes públicos que se omitiram em relação aos problemas da casa noturna que permitiram o incêndio.

“O Munícipio de Santa Maria, o Ministério Público e o Corpo de Bombeiros, três entes públicos cujas condutas fazem com que o Brasil tenha responsabilidade internacional nesse caso. A lei determinava que a boate obedecesse uma série de regulamentos, e esses entes públicos tinham conhecimento que a boate não obedecia e, no entanto, se omitiram. Nada fizeram para que a boate sanasse esses problemas ou que fosse fechada”, explicou a defensora.

A Comissão Interamericana da OEA investiga a situação e pode formular recomendações ao Estado responsável, para que, por exemplo, situações similares não ocorram novamente e para que os fatos ocorridos sejam investigados e reparados.

Ainda de acordo com a advogada, outros casos foram levados à OEA e tiveram resultado positivo.

“A Comissão Interamericana já se manifestou a respeito de outros casos no Brasil, inclusive a Lei Maria da Penha foi consequência de uma recomendação da OEA. Queremos que se reconheça a responsabilidade, essa é a nossa expectativa”, ponderou.

O caso da Kiss na Justiça

A tragédia ocorreu na madrugada de 27 de janeiro de 2013. O fogo teve início durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira, que fez uso de artefatos pirotécnicos no palco durante um show na festa universitária realizada naquela madrugada.

As chamas no teto se alastraram rapidamente devido ao material inflamável usado como isolamento acústico, o que produziu fumaça preta e tóxica. A boate estava superlotada e não havia saída de emergência.

Testemunhas relataram ainda que a Kiss não possuía sinalização interna e que o local ficou às escuras logo que o fogo começou, o que dificultou a saída do público e fez com que muitos frequentadores acabassem no banheiro, onde morreram asfixiados.

Em 2013, a Polícia Civil conclui o inquérito com 16 indiciados e apontou mais responsáveis. Entre eles, os donos da boate Mauro Hoffmann e Elisandro Spohr e dois músicos da banda Gurizada Fandangueira que tocava na noite do incêndio, Marcelo dos Santos e Luciano Leão.

O juiz decidiu levá-los ao Tribunal do Júri. A defesa recorreu, e o caso está sendo examinado pelo Tribunal de Justiça. Os quatro foram denunciados por homicídio e aguardam em liberdade.

Quatro bombeiros foram julgados. Um foi absolvido, dois foram condenados pela Justiça Militar por descumprimento da lei de expedição de alvarás e o último foi condenado pela Justiça comum por fraude processual.

Na área cível, duas ações individuais resultaram em decisões prevendo o pagamento de indenizações por parte do poder público. A primeira delas foi ajuizada por uma sobrevivente, que terá de ser indenizada pelo governo estadual e pela prefeitura, além dos sócios da boate. A segunda determina que a prefeitura repasse valores a familiares de uma vítima.

Fonte: G1 / Foto: Pixabay (Ilustração)

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